Pierre Aderne - Da Janela de Inês ***

Um disco que se ouve como se lêssemos um livro. Porque foi no esboço de um livro que nasceram estas 11 canções. 11 quadros, contados dia a dia, da vida de Inês, uma mulher, talvez de lisboa, talvez dos nossos dias. Dúvida geográfica porque esta música viaja de Lisboa ao Brasil, passando por África, como se percebe logo aos primeiros acordes. Dúvida temporal porque, apesar da contemporaneidade da história, são intemporais os temas que aborda, mas também ainda porque a sonoridade dos acordes acústicos, especialmente do violão, remete muitas vezes para a música dos travadores, medievos ou renascentistas. Pierre Aderne, músico e compositor residente em Lisboa há uns anos, explica que começou por escrever a história, pensando num livro, mas a certa altura percebeu que era história que pedia música. Da qual se encarregou Leo Minax, num processo criativo que também atravessou geografias. O violão domina, mas lindo é quando entra, por exemplo, o acordeão (“Cabelos de Lua Preta”) ou a guitarra portuguesa (“Tu Não Sabes o Que É o Amor”). Manuel Morgado

Carmen Souza - Creology ****

Comparam-na a Billie Holiday, Nina Simone, Sarah Vaughan ou mesmo Elis Regina. Estas comparações são sempre muito discutíveis, mas servem para nos situarmos. Que Carmen Souza tem uma excelente voz e uma capacidade interpretativa acima da média fica claro logo ao primeiro tema deste disco, “Ligria” e nas modulações que exibe. Isto, claro, para quem passou ao lado dos oito discos, em estúdio e ao vivo, lançados na última década e meia. Se fosse necessário catalogar esta cabo-verdiana, nascida em Lisboa em 1981, o jazz seria a opção mais evidente (ouça-se, por exemplo, “Pretty Eyes”), porém, mais uma vez, redutora, porque é do Brasil, mas especialmente, de África (“Creology”), que chegam os ritmos e odores vocais mais fortes. Coisa contemporânea, de raízes longínquas. Esta é também uma música que respira, que deixa ouvir cada respiração dos instrumentos, com destaque óbvio para o contrabaixo de Theo Pascal.

The Strypes - Spitting Image ***

Sim, podíamos ouvir os originais, mas não seria a mesma coisa. Nem teria a mesma graça. Os originais são, por exemplo, Elvis Costello, Joe Jackson (“Easy Riding”) dos primeiros acordes, os Jam, os Squeeze (“Grin and Bear It”). E também os mais antigos Dr. Feelgood, papas do pub-rock, que os rapazes queriam imitar quando começaram a tocar, aos 16. E ainda, imagine-se, Bo Diddley, influência muito respeitável, homenageado em “Oh Cruel World”. Na prática, o que os rapazes praticam é uma new wave completamente fora de tempo, mas bem esgalhada. Obviamente, com a desvantagem de ser um quase pastiche, mas com o mérito da alegria que só a honestidade (meia bola e força) pode alcançar. “(I Need a Break From) Holidays” estica-se quase até ao punk (aquela batida, aquelas guitarras), mas o resto é bem mais estilizado, apesar de enérgico. Ao terceiro disco, a fórmula destes irlandeses parece aguentar-se.

The Beach Boys - Sunshine Tomorrow *****

Este é, então, o lado B do Verão do Amor. Em 1967, os Beach Boys já tinham gravado a sua obra-prima absoluta (“Pet Sounds”, de 1966) e o genial Brian Wilson perdeu-se, literalmente, na produção de um disco (“Smile”) pensado para derrotar os Beatles, mas que nunca viu a luz do dia. Em 67, portanto, quando toda a gente era uma revolução musical, os BB quase hibernaram. Lançaram um disco (“Wild Honey”), sem Brian ao volante e que era uma espécie de marcha atrás, com a banda a descobrir o R&B, por onde toda a gente já tinha passado (“How She Boogalooed”), e quase sem os devaneios barrocos do mesmo Brian (“A Thing or Two”), para depois embarcarem numa digressão – adivinharam, também sem Brian... – que mostrava um grupo pouco consistente e com umas versões a léguas das registadas em estúdio. Esta edição recolhe tudo isso. “Wild Honey”, pela primeira vez em versão estéreo, a que se juntam uma série de versões alternativas, de estúdio, de ensaio. Dá para perceber que, sem a liderança de Brian, a banda procura qualquer coisa e essa coisa não é propriamente desinteressante, apenas não é inovadora. Há depois mais uma mão cheia dos destroços de “Smile”, que já haviam sido alvo de ampla edição em 2011 (“Smiley Smile”). E ainda uma série de gravações ao vivo da tal digressão e mais umas coisas dispersas, a que não falta uma gravação de estúdio destinada a levar palmas e fingir de vivo (“Heroes and Villains”, por sinal uma versão muito interessante e diferente da oficial, esta sim com Brian em plena acção). Tudo somado, temos uma edição que, pela primeira vez, demonstra o esgotamento do fulgor inicial dos BB e a passagem para uma versão menos ambiciosa, à sombra da qual a banda sobreviveu nas décadas seguintes. Com e sem Brian.

Dan Auerbach - Waiting on a Song *****

Gene Chrisman tocou bateria em “Natural Woman”, de Aretha Franklin, e em “Son of a Preacher Man”, de Dusty Springfield. Bobby Wood, que aparece em “Sweet Caroline”, de Neil Diamond, e “Suspicious Mind”, do grande Elvis, exibe aqui teclas variadas por todo o disco. E depois há Duane Eddy, que tocou em centenas de discos e cuja guitarra abrilhanta por exemplo, “Cherrybomb”. E mais uma data de músicos de estúdio deste calibre, e compositores e produtores batidos de Nashville. E Mark Knopfler que dá um ar da sua graça a fazer o que sabe.
A lista e o peso das participações neste projecto rivalizam com os nomes sonantes cujos discos foram produzidos, nos últimos anos, por Dan Auerbach: Lana del Rey, Dr. John, Ray LaMontagne... Mas a lista também diz muito sobre o tipo de música que se ouve nesta segunda aventura a solo da alma mater dos Black Keys (a anterior, “Keep It Hid”, data de 2009). Soul, country, folk, funk, pop... isso tudo, mas embrulhado de uma forma brilhante e divertida. Beach Boys, Burt Bacharach, Beatles, Neil Young são os nomes que poderíamos acrescentar aos já mencionados, nem tanto como influências, mais como presenças involuntárias, tal a proximidade que por vezes é alcançada. Mas se quisermos encontrar mesmo algo de semelhante, na abordagem (música de estúdio instantânea, divertimento notório) e nos estilos percorridos, então é obrigatório lembrar os Traveling Wilburys, que no final dos anos 80 juntaram gente como Dylan, Harrison, Roy Orbison. São canções, 10 no total, quase todas com menos de três minutos, que apelam ao assobio, ao cantarolar, ao pé de dança.
Guitarras de vária sonoridade, palmas, coros afinadinhos e umas cordas, raras mas belas e certeiras. Nada a ver com os Black Keys. Será, talvez, demasiado fácil, talvez mesmo pouco exigente. E porque há-de toda a música ser complicada ou armada ao pingarelho?

Beth Ditto - Fake Sugar ****

“In and Out”, a segunda canção do disco, é um daqueles hits instantâneos capazes de encher uma pista de dança, estilo Tarantino. Bem ouvidas as coisas, a festa começa logo no primeiro tema, “Fire”, um delicioso pastiche do “Fever”, de Peggy Lee.
Explosões de ritmo atrás de explosões de ritmo, atravessando décadas. Do soul dos anos 60, ao punk e disco dos 70 (“Do You Want Me To”), às bandas soft rock dos 80 (“Fake Sugar”)... aos estádios do século XXI (“We Could Run”). Tudo isto servido por uma das mais potentes vozes dos últimos tempos, uma Adele turbinada (“Savoir Faire”).
Desfeitos os Gossip (1999-2015), os amores e outros sonhos, Beth Ditto atira-se a solo para um disco que só peca por ser talvez demasiado perfeito. Por exemplo, as baladas “Lover” ou “Love In Real Life” escusavam de ser tão expectáveis que roçam o sensaborão. Um pouco mais de ousadia e estava lá.

Colter Wall - Colter Wall *****

Johnny Cash, é verdade, já estava a precisar, não talvez de um sucessor, mas eventualmente de um herdeiro. Reserve-se, claro, alguma margem de dúvida. Cash é Cash, os tempos são outros e Colter Wall tem apenas 21 anos. Não se sabe se será preso um dia, se verá Deus noutro. 
Uma coisa é já certo: o homem tem uma voz do outro mundo. Um barítono tão encorpado que diríamos estar perante alguém na casa dos 60, muito tabaco aspirado. Mas não é só a voz. É aquele acompanhamento austero, baseado na guitarra acústica, pedal steel amiúde e pouco mais. Bateria e piano, como na belíssima “You Look To Yours”, uma canção de estrada e mulheres, e lições a tirar, como só na country se faz. 
Há a obrigatória referência a Woody Guthrie, uma canção tradicional e outra de Townes Van Zandt. O resto é material próprio, talkin’ blues do nosso século. O rapaz é canadiano, o que, diz a história, o qualifica sobremaneira para esta empreitada.