Madonna, Como Um Ícone *****

A virgem prostituta que virou ícone
Inquérito exaustivo à construção de um dos maiores mitos da música pop.

O disco Like a Prayer, de 1989, mostra na capa um grande plano do ventre nu de Madonna emergindo de uns jeans debotados e de fecho prestes a soltar-se. Apenas mais uma das imagens provocantes da diva? Lucy O’Brien, autora de Como um Ícone, vê nessa imagem muito mais. Em seu entender, trata-se de uma referência a um episódio da infância, do dia em que a mãe, uma fervorosa católica, cobriu, como mandavam as regras, o Sagrado Coração com panos, quando em casa entrou uma mulher de calças de ganga e fecho eclair, coisa ainda rara nesse final dos anos 1950.
Para O’Brien, esses primeiros anos de ambiente fortemente católico são a chave fundamental para perceber Madonna. Quase tudo que ela viria a fazer seria por oposição a esse tempo e, de certa forma, à mãe, num persistente exercício de libertação. Por exemplo, a forte expressividade da artista será um contraponto à imagem da mãe morta num caixão aberto, com os lábios cosidos, tinha ela cinco anos.
Se um dos pólos do ícone é a religião, presente de forma explícita e provocatória em muitos seus clips e concertos, o outro será obviamente o sexo. Que Madonna pratica desde muito cedo, com muita gente, em todas as formas imagináveis pela mente humana. Essa tensão virgem/prostituta, explorada a partir do sucesso-símbolo de “Like a Virgin”, será pois a marca de água à volta da qual se desenvolverá toda uma carreira.
A obra de O’Brien tem muito sexo, por vezes explícito, tem droga, ambientes desvairados (no primeiro filme amador em que participou, alguém estrela um ovo no seu ventre, por entre alusões lésbicas), episódios escaldantes, mas sempre na justa medida necessária à explicação do crescimento artístico de Madonna.
O livro está, de resto, nos antípodas das biografias tablóides tão comuns quando se fala de estrelas, constituindo, pelo contrário, um exaustivo exercício de investigação sobre a artista enquanto tal. De como começou pela dança, da influência visual do punk e de Debbie Harry (“Aquela devia ser eu”, terá comentado a vocalista dos Blondie, no auge da fama de Madonna), das raízes musicais na música de dança e especialmente no disco, do modo como soube reinventar-se a cada passo, do suor que tudo lhe custou. E, claro, da mestria com que sempre soube captar, ela própria e não outros por ela, as tendências em germinação, tornando-se assim ela mesmo vanguarda.
Apesar de ser escrito por uma fã confessa, o livro não esconde os falhanços, seja na música (especialmente interessantes são os capítulos iniciais, em que a cantora e os que sucessivamente a rodeiam tentam definir o som que melhor se lhe cola), seja noutras aventuras em que se meteu, entre as quais avultam as cinematográficas.
O’Brien tem uma já consistente bibliografia na área da música e percebe-se a cada página que sabe do que escreve, que conhece os nomes e as tendências que marcaram, publicamente e nos bastidores, a cena pop das últimas décadas. Além disso, alicerça tudo em dezenas de entrevistas a músicos e a outras pessoas que conviveram com Madonna.
Além de fotografias que ilustram as sucessivas facetas da cantora, o livro integra ainda listagens sobre quase tudo o que com ela se relaciona, sejam discos, livros, videoclips, filmes, etc, o que torna numa obra de referência.
A tradução é cuidadosa, tendo havido o cuidado de incluir algumas notas de rodapé acerca de termos intraduzíveis.
É claro que escrever uma “biografia definitiva” de alguém com 50 anos e que se reinventa com tanta frequência é um enome risco. Pode sempre haver um segundo volume, é certo, mas e as teses defendidas no primeiro? No final do livro, a virgem-prostituta começa a dar lugar à estrela milionária instalada em Londres, que alguns dizem já conservadora. Quem nos garante que Madonna não nos surpreende e inventa outra Madonna? Vai uma aposta?

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