Miguel Real - O Último Minuto na Vida de S. *****

Este livro é um escândalo. Uma suave escândalo, vamos lá, que a Pátria não se comove facilmente, mesmo quando brincam com os seus mais queridos mitos. Ou até com os seus vivos mais ilustres, como é o caso.
Este livro, esclareçamos as coisas, é sobre o grande e maldito amor de Francisco Sá Carneiro e Snu Abecassis na hora da sua morte. Mas é também uma mordaz, divertida, raramente melancólica, revisitação do quotidiano e da política do Portugal da transição para a democracia.
A leitura, é preciso pré-avisar, só será plenamente degustada por maiores de, digamos, 40 anos, ou então por leitores mais à vontade com a história recente. A quase totalidade dos personagens permanece num rigoroso anonimato, deixando-se descobrir com relativa facilidade por quem conheça o contexto em que se movimentam, ou, mais deliciosamente, pelas características que ostentam. Por exemplo, antes de embarcar no Cessna fatal, o casal de amorosos despede-se de uma das mais persistentes figuras secundárias deste livro, o “Almirante insignificante, testa ignorante, nariz petulante, boca rutilante (…) baixinho, miudinho, sumidinho (…) olhos inquietos de furão, boca rasgada de leitão”. Um candidato presidencial, enfim, que desagrada especialmente a S, quase tanto como o ministro contabilista “funcionariozinho escrupuloso (…) bom aluno de professores obtusos”, que um dia ainda haverá de ver “Portugal jorrar-se a seus pés”. Não sei se estão a ver quem é…
A escrita é como acima se transcreve. Sincopada, por vezes quase musical, sugerindo, à vez, uma leitura ora obsessiva, ora mais reflexiva, por exemplo quando os apaixonados ensaiam os últimos gestos de ternura num avião que sabemos estar prestes a despenhar-se.
Por este último longo minuto na vida de uma escandinava desinibida perpassa um «país arqueológico», perdido algures entre uma absurda guerra em África e a devoção a Fátima, e que, de forma explícita ou implícita, remete frequentemente para O’Neill, de quem esta obra é claramente devedora, quer no plano estilístico, quer na visão de um Portugal tragicamente diminuitivo.
A aposta de ficcionar o real, tão rara na nossa literatura, é francamente ganha. Sendo ficção na forma, a história pouco difere da realidade, mesmo nos improváveis momentos de paixão derradeira.

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