Minta & The Brook Trout - Olympia ****

Vitorino, o alentejano, passou há dias na televisão a dizer que “quando um português canta em inglês fica tristemente ridículo”. Vitorino, obviamente, nunca ouviu Francisca Cortesão, a voz que se esconde atrás do estranho Minta & The Brook Trout. Há razões culturais, mais que comerciais, ao contrário do que Vitorino pensa (!?) para que parte substancial de uma geração opte pelo inglês. Porque as canções que escrevem e cantam nada têm a ver com o local de génese, mas bebem antes directamente noutras tradições, no lado de lá do Atlântico. As canções dos Minta são devedoras do folk e da country e de toda música que daí deriva. E cuidam bem da herança. No activo desde 2008, este quarteto lança agora o segundo disco, muito mais seguro de si, com uma produção mais profissional, mas que deixa intacta a sonoridade caseira. A melancolia domina, mas a ironia surpreende e espreita amiúde. “Falcon”, “From The Ground” (belo dueto), “Future Me” são excelentes canções. Beautiful songs, Vitorino.

David Fonseca - Seasons: Falling ***

A música pop nunca se deu muito bem com projectos conceptuais. A pop, rock se quiserem, vive de uma certa superficialidade, liberdade, fragmentação, que casa mal com as amarras de uma ideia estruturada. É claro que há excepções, que são isso mesmo – excepções. David Fonseca dedicou o ano de 2012 a uma ideia – dois discos, lançados na Primavera e no Outono, em que supostamente nos dá a ouvir o retrato dos seus dias durante um ano. O primeiro, Seasons: Rising, saiu em Março e era suposto conter o lado mais luminoso dos dias de David; este Seasons: Falling seria, então, o reverso, a melancolia, os dias curtos e cinzentos. Primeira constatação: o autor teve uma certa dificuldade em manter a coerência do projecto, não sendo evidentes as diferenças de tom entre os dois discos. De certa forma, tendo em conta a tal aversão da pop à organização em gavetas, é relativamente indiferente que a separação de águas não seja mais evidente. Aliás, só a elevada carga de marketing que acompanha cada lançamento de David Fonseca – atenção, isto é um elogio – nos leva ouvir ventos gélidos neste disco, em contraposição ao supostos raios de sol da primeira parte do projecto. Porque, se é verdade que o primeiro single All That I Wanted é uma balada serena e outonal, já o tema que o antecede (Monday, Tuesday, Wednesday, Thursday) transpira jovialidade por todos os poros, alegria apenas ensombrada pelo erro de casting do duo com a brasileira Mallu Magalhães (não se entenda o que canta, o tom não cola com o de David e da própria canção). Dito isto, assinale-se que o disco tem algumas boas canções e que o principal pecado seja o do perfeccionismo. Mas, conceito à parte, revela pouca ambição e David Fonseca parece ter dificuldade em libertar-se de esquemas melódicos e interpretativos demasiado batidos.
[versão não editada]

Bob Dylan - Tempest ****

Dylan é a medida de Dylan e isso pode ser um problema. Falamos do homem que, há cinco décadas, estabeleceu cânones, não apenas na música, mas na cultura tal como a entendemos no sentido mais lato. O problema é que esse Dylan, sendo a medida de todas as coisas, não é repetível, ou sequer comparável, e não é suposto que do mesmo Dylan surjam novos cânones. Por isso, chega a ser desonesto o que muita imprensa anglo-saxónica tem feito por estes dias – sobrevalorizar Tempest e estabelecer comparações, por vezes canção a canção, com as obras-primas (não há que ter medo das palavras) dos anos sessenta. O Dylan de Tempest é o Dylan que muito cedo percebeu a armadilha de ser um mito vivo, recusou o altar, tropeçou uma e outra vez, naufragou em discos menores, para se reerguer encarnado de novo em trovador de amores urbanos, paisagens interiores devastadas e um certo desencanto com o mundo. Há uma década que assim é. O ciclo que musicalmente se poderá catalogar como de pré-rock, construído com sonoridades austeras de blues, rockabilly, country. O início de Tempest faz lembrar um velho programa de rádio em Onda Média e é assim que somos desafiados para uma viagem que nos levará a territórios maioritariamente obscuros. A tragédia do Titanic reinventada, ao ponto de colocar na acção original o Leonardo DiCaprio da versão cinematográfica. O amigo Lennon, mais que o músico, evocado através das suas próprias palavras. Uma “Pay in Blood” com riffs de guitarra roubados aos Stones. Uma “Narrow Way” encharcada de blues do Mississipi. Uma “Scarlet Town” feita valsa triste, desconjuntada. O violino, ou o acordeão, a acentuarem a toada melancólica. E depois os poemas, jogos de enganos, em que cada um ouve o que quer, nem sempre ouvindo o que ouvira antes. Mas em que nada se aproxima do sublime. Caso para dizer que Dylan está em forma. Sim, mas.

A voz triste da menina bonita - Norah Jones no Campo Pequeno

 
Norah Jones arrumou de vez o jazz e vai recriar no Campo Pequeno a atmosfera delicada e contida dos dois últimos discos. Uma aventura que apela à disponibilidade de quem a vai ver e ouvir

Aviso à navegação: esta Norah Jones é a nova Norah Jones, e não a outra, aquela que tanto ouvimos no rádio e da qual (ah, sim, consultem os arquivos) já andávamos todos um pouco enjoados, tal era a omnipresença sonora de “Come Away With Me”, o megasucesso de estreia. Essa Norah Jones, talvez nem fosse necessário recordá-lo, era uma miúda gira, de voz doce, exímia praticante de um jazz ainda mais ligeiro que o de Diana Krall. Isso foi há uma década e a rapariga – filha do sitarista Ravi Shankar, mandam as regras que se assinale – arrecadou nessa altura uma data de grammys, isto para não falar dos dólares. O encanto manteve-se e tivemos direito a nova dose dois anos depois, com o disco Feels Like Home e o novo megasucesso “Sunrise”. “Sunrise, sunrise...”, lembram-se?
Pois, essa Norah Jones já não existe e convém que os mais distraídos tomem disso boa nota, porque esse é um facto relevante para o que aqui nos traz. A miúda tinha 23 anos quando ficou com o mundo a seus pés e – qualquer terapeuta o comprovará –, muito aguentou ela, que o sucesso não é coisa de fácil digestão. Mas, é a lei da vida, há idades tramadas e – desculparão a incursão tablóide pela intimidade da artista – as miúdas giras apaixonam-se (as outras também, mas isso não vem agora ao caso) e nem sempre as coisas correm bem. São as dores do crescimento. Interior.
Chegamos assim a 2009. O jazz (já vos tinha dito que Norah escrevia o que interpretava?) fica para trás e, coração perturbado, novos trilhos musicais se apresentam. Eis-nos em pleno território pop, devedor, embora, de alguma atmosfera indie. Dois discos – The Fall e Little Broken Hearts, já deste ano – cunham uma nova Norah. As canções são mais íntimas, mais sofridas, menos luminosas, autobiografias de males do coração. E vestem-se de roupagens, digamos, menos simpáticas (há lá coisa mais agradável que o jazz ligeirinho?). As guitarras, na primeira incursão, e a electrónica, na versão deste ano pela mão de Danger Mouse, dominam as canções. É esta Norah Jones que agora aparece por cá.
Miúda tímida – é verdade! – canções íntimas e atmosféricas. É isto Norah Jones ao vivo nos dias que correm. Os sucessos dos primeiros anos, a crer no alinhamento que já a acompanha desde América e a deverá levar ao resto do mundo, ficam para os encores, o que poderá ser uma autêntica chave de ouro para muitos dos que vão passar pelo Campo Pequeno.
Os outros, espera-se que sejam a maioria, certamente irão à procura da reinterpretação das texturas delicadas dos dois últimos discos. E é nesse território que o concerto deve ser apreciado. Norah Jones canta, bem como sempre, e acompanha-se ao piano e na guitarra, com o apoio de uma banda de quatro músicos de estrutura pop clássica.
O sucesso de um concerto depende, por vezes, da empatia que se gere entre quem está no palco e quem assiste. Já percebemos que Norah Jones está numa fase particularmente sensível, de abertura a novas sonoridades, experiências. Por uma vez, a dúvida está do lado de cá – é isso que esperam muitos dos que a vão ver e ouvir?

Cat Power - Sun ****

Este disco é energia pura. Anuncia-se isso nas tonalidades eléctricas da capa, mas é a vitalidade das canções que o confirma. Há referências sombrias atribuíveis, talvez, à tristeza afectiva da autora (os amigos que se perdem e não voltam mais, em “Manhattan”), ou ao estado de desânimo global (estamos sentados em ruínas, canta ela em “Ruins”). É verdade. Mas este disco está mais para abrir uma nova fase que para lamuriar os amargos do passado. Certamente que não conseguimos quebrar as amarras da condição humana (“Real Life”, ou “Human Being”), mas ninguém nos pode proibir de aspirarmos ao estatuto de super-heróis (“Nothin’ But Time”). Este é, afinal, o disco de libertação e renascimento de Cat Power. Para trás fica a fase mais intimista e artesal do início e a neo-soul de que The Greatest (2006) foi o expoente máximo. Neste Sun, que já andaria a amadurecer há meia dúzia de anos, mas que levou um empurrão decisivo já em 2012, surge-nos uma Cat Power sozinha em estúdio, a compor tudo, a tocar (quase) todos os instrumentos, a cantar talvez da forma mais segura que já lhe ouvimos – embora sem perder aquele grão que encanta –, finalmente, a produzir. As guitarras ficam quase esquecidas (“Cherokee” é uma razoável excepção), o piano reduz-se praticamente à marcação do ritmo, e o palco fica para os sintetizadores, caixas de ritmos, e similares. Espantoso é que a intensidade com que é usada toda essa electrónica deixa espaço para uma arquitectura musical essencialmente subtil, em que tudo respira e toda a respiração nos é dada a ouvir. Exemplo supremo disso mesmo é “Nothin’ But Time”, uma peça de 11 minutos, com Iggy Pop no papel de convidado, e David Bowie da fase Low a pairar como referência explícita (“it’s up to you to be a superhero”).

VVAA - Just Tell Me That You Want Me (A Tribut to Fleetwood Mac) ****

Que é como quem diz, oiçam sem preconceito. Os mais novos, os admiradores de MGMT, Antony, Lykke Li ou St. Vicent, provavelmente nem sequer se lembram dos Fleetwood Mac (FM), ou, na pior das hipóteses, já lhes passou pelos ouvidos uma música empastelada, razoavelmente aborrecida. Os outros, os do tempo dos FM, talvez nunca se imaginassem a ouvir Karen Elson, Washed Out, Best Coast. E é aí que está a graça de tudo isto, nesse festival de equívocos que, por uma vez, tem um final feliz. Comecemos pelos FM. Poucos grupos tiveram tantas e tão diversas encarnações, do blues feito em Inglaterra à pop mais comercial de Los Angeles. Andaram pelo Olimpo, artístico e comercial, na segunda metade dos anos 70, e depois cavalgaram essa glória muito para lá dos limites do razoável e audível. Depois, este disco, homenagem assumida de um cruzamento de gerações. Dos antigos, há dois momentos muito altos: “Oh Well”, dos blues iniciais de Peter Green, numa versão arrastada de Billy Gibbons (ZZ Top), e “Angel”, de que Marianne Faithfull se apropria de forma soberba. Dos mais novos, o destaque vai para Likke Li e uma seguríssima reinterpretação de “Silver Springs” que tem o grande mérito de nunca descolar verdadeiramente do original, para o intimismo de Antony em “Landslide”, ou para a forma como os Best Coast retiram “Rihannon” aos lençóis de penumbra a que Stevie Nicks a submetera e a trazem para a luz da pop dançável. O resto não tem muita história. Talvez assinalar o falhanço da versão de Karen Elson de “Gold Dust Woman”, ou a irrelevância de “Sisters Of The The Moon” às mãos e vozes de Craig Wadren e St. Vicent. Porém, ao contrário do que é habitual neste tipo de tributos bem intencionados, o balanço resulta francamente positivo.